Um passeio no centro.

Carlos Henrique de Paula
6 min readJul 17, 2019

A graça como orientação dos passos e lente para os espaços.

Fotos de celular do centro de Goiânia. @vulgocarlao
Fotos de celular do centro de Goiânia. @vulgocarlao

Jesus oferece o mundo pra ser visto, observado, e mais do que isso, Jesus oferece o mundo pra que O vejamos nele.

Eu gosto muito de viajar, não que eu já tenha viajado muito, mas todas as viagens que fiz foram inesquecíveis, cada uma a sua maneira. Eu e minha esposa gostamos muito dos centros das cidades, até moramos no centro da nossa, gostamos da fluxo de pessoas, do barulho com hora pra acabar, do fim semana parado, do horário comercial frenético, gostamos das comidas de rua, dos estabelecimentos históricos, de ter por perto coisas aleatórias mas sempre úteis, sabe? Como uma ferragista, que de maneira estranha é do lado dos sebos, que por sua vez é perto do hospital psiquiátrico (até hoje só usufruímos dos dois primeiros). Os centros geralmente são os corações das cidades. Bombeiam um fluxo pessoas, culturas, de forma centrifuga e centrípeta. Todas as manhãs as pessoas vêm, todas as tardes as pessoas vão e esse coração pulsa vida para a cidade toda.

Em viagens que fizemos, hospedados nos centros das cidades é claro, sempre procuramos de cara um serviço usufruído por mochileiros do mundo todo, o maravilhoso Free Tour[1], para os que não conhecem, funciona assim. Em algum ponto de encontro na cidade, combinado na internet, você logo identificará uma pessoa uniformizada, um guia, já cercada por um grupo (geralmente ingleses pontuais, desculpe a redundância) a pessoa uniformizada de forma geral é um local, conhecedor da história, da geografia, da cartografia da cidade, o que o leva ser uma autoridade nas avenidas becos e vielas, o guia conhece dos restaurantes chiques aos estabelecimentos de comida frequentado pelos locais, sabe o nome das autoridades e dos mendigos. No free tour você passa um período do dia andando e sendo orientado sobre curiosidades da cidade e da cultura local, você sempre é surpreendido, sempre se descobre um lugar escondido que desejará voltar logo, ou um lugar barra pesada para não querer voltar nunca. No fim do passeio, você paga se quiser ou o quanto quiser para o guia, que no fim do rolê já parece um amigo gringo com um sotaque legal. Isso tudo geralmente no centro da cidade. Estar no coração de uma cultura com um “amigo” que conhece tão bem esse coração, é uma das experiências com a graça comum da parte da Trindade que mais me dão prazer.

Fotos de celular do centro de Goiânia. @vulgocarlao

Existe uma graça especial, além dessa graça comum, segundo as escrituras, essa é uma graça que salva, justifica, que nos dá os méritos de Jesus, nosso substituto, o justo que morreu por injustos. Uma das imagens bíblicas que mais falam comigo a respeito dessa graça especial, é a figura do amigo,“Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamei-vos amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos dei a conhecer”.João 15:15. É surpreendente entender que em Jesus, amizade e senhorio não são mutuamente excludentes. Nosso Senhor é umamigo daquelesque diz “vem e segue-me” esse amigo, que nos pede para segui-lo é também o que diz, “Observe os lírios e os pássaros”. Percebe? Jesus oferece o mundo pra ser visto, observado, e mais do que isso, Jesus oferece o mundo pra que O vejamos nele, na companhia da sua própria amizade, vê-lo tanto na beleza do mundo que remete a sua própria glória, quanto nas suas fissuras que remetem aquilo que precisa de reforma ou quem sabe rejeição. Jesus é um amigo que conhece todas as ruas, becos e vielas, de toda a realidade criada, ele é o amigo que quer outras amizades provenientes dos mais diversos lugares, dos centros e periferias de Jerusalém, Judéia, Samaria, até os confins da terra.

Tenho a impressão que Jesus também gosta de outros tipos de centros, mais do que os centros das cidades, ele gosta do centro das pessoas, do coração das criaturas que são imagem e semelhança de Deus, do lugar que procedem as fontes da vida. Santa Tereza d’Ávila[2]foi alguém que gastou a vida no trabalho de descortinar uma vida mística, experimentou na vida de oração uma espécie de peregrinação, de passeio pela “pessoa interior”, pelas moradas do mais íntimo da experiência humana. Contemporâneo de Santa Tereza D’Ávila, João Calvino também gastou da sua vida para falar também do aspecto místico da caminhada cristã, “com a oração encontramos e desenterramos os tesouros que se mostram e descobrem a nossa fé pelo Evangelho”. [3]Há algo de valioso no exemplo dessas duas pessoas que amaram Jesus, o entendimento do valor da oração, primeiramente como algo que deve existir como marca na vida do redimido, mas também como uma espécie de contínuo passeio pelo centro, o centro da pessoa, do coração. Nosso interior é um lugar complexo, há lugares belos dentro de nós que testemunham uma habitação de Cristo, mas há também lugares com pouquíssima luz, que é pouco visitado e que se formos honestos para admitir, temos vergonha de mostrar.

Fotos de celular do centro de Goiânia. @vulgocarlao

Por vezes me pego imaginando algumas coisas, e acho que isso tem tudo a ver com teologia e espiritualidade.[4]É muito fácil me perder nos labirintos dos meus delitos e pecados, há lugares em mim que parecem não ter saída, há cômodos com pouca luz e cheiro ruim, me alegra saber que tenho alguém, um amigo que conhece esse lugar mais do que eu, que sabe de mim mais do que eu mesmo, que me mostra “lugares”, processos, andamentos do que ele mesmo, em sua palavra tem informado e formado no meu íntimo. Essa habitação da palavra no coração, essa vivência do Cristo no centro é algo tão maravilho que faz o milagre de não me deixar preso e perdido dentro de minhas próprias cadeias, próprias ruas, próprios caminhos interiores. Pela graça, somos conduzidos para fora, para fora de nós, para longe da tentação de pensarmos que somos o centro da história toda.

Fotos de celular do centro de Goiânia. @vulgocarlao

Viajar é muito bom, é extremamente enriquecedor, mas há outro tipo de viagem, ela é gratuita e é a mais enriquecedora de todas, a viagem para dentro, para o centro, lá para o coração, que é feita com a palavra e a oração. Temos uma candeia que ilumina e santifica os lugares nocivos e inóspitos dentro de nós, há na vida devocional o desenvolvimento de uma amizade que conduz, que pega na nossa mão e nos mostra, diz sobre nós, que também leva pra fora e nos ensina a viver em qualquer lugar que estejamos. Amizade com Jesus nos dá o monastério de todo discípulo que é “o quarto em secreto, de onde Pai ouve em secreto”. A amizade com Jesus nos dá uma missão que é na rua e no mundo com tudo que somos e temos, tendo ele como guia. A amizade com Jesus no dá a esperança de conhecermos uma cidade santa que desce dos céus e restaura toda a criação. É isso! A amizade com Jesus nos dá uma cidade, a Nova Jerusalém vem! espero te encontrar lá no centro.

Ps. Texto originalmente publicado na revisa do clube de assinaturas Box95.

[1]https://www.freetour.com

[2]Castelo interior ou moradas. Santa Tereza de Ávila

[3]Institutas da religião Cristã livro 3. Cap. 20. Seç. 2

[4]Kevin Vanhoozer disse certa feita que “Teologia pode ser definida como a tentativa de imaginar as imagens de Deus a maneira dele”. Quadros de uma exposição teológica.

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