Silogismo barato. Eu sou maior que Pelé.

Carlos Henrique de Paula
3 min readMar 16, 2021

1999, no interior, campos de futebol e as pastagens não contrastavam tanto. No fim de semana tinha jogo no “estádio”, antes da partida principal tinha o jogo do “cascudo” o “esfria sol” o “aspirantes”, que na verdade era um selecionado municipal de velhos, junto com os jovens e franzinos, mais uns aventureiros com nítidos problemas de alcoolismo, e também o pessoal da zona rural com carência de algum tipo de diversão. Eu estava no bolo, representando os jovens franzinos obviamente, na humilhante posição de reserva de algum bêbado com mais vigor físico.

Vereadores davam as caras, com chapéus e botinas novas, o prefeito fazia o agrado pagando espetinho e cerveja barata, as meninas e os meninos se amostravam com roupa de sair. Dia bonito, jogo feio, no intervalo do jogo contra o time de Fazenda Nova, perdíamos por um tento, gol feito por um tal de Cassiano, que além de “ponta de direita” era também badeco de leiteiro, andava de segunda a sábado na carroceria de pau de uma c-10 à gás, gerindo como um engenheiro os latões de leite buscados de curral em curral.

Nosso “técnico” era o Antônio, vulgo pica-pau, ele andava puxando uma perna, tinha uma voz de Billy Corgan, mas lá a gente falava taquara rachada. Tôin Pica-pau deu instruções sérias no freakshow do intervalo, ele sabia ver o jogo, a obediência entrou em campo com os jogadores e a batalha recomeçou.

Faltando uns 15 minutos para o fim da partida, meu olhar cruza com o do técnico, minha barriga esfria, eu tinha 13 anos, aquilo era para mim era final de copa.

– Carzenrrique!!!(Carlos Henrique)Aquece!

Aqueci, a moda antiga, polichinelos, umas alongadas mentirosas, uns piques sem sair do lugar. Lembro do cheiro da grama, fim de tarde no interior, junto com cheiro de vestiário, que tinha cheiro de gelol, de suor ancestral. Minha chuteira umbro bem amarrada, caneleira no lugar, número 18 nas costas. Juiz apita eu entro correndo no lugar do Betinho na ponta esquerda. Um primo meu era Goleiro, Benái, aprendiz de mecânico, outro primo meu era centro avante, Wendel Galinha motorista da prefeitura. Benái bateu tiro de meta, Ézio Batata escorou, a bola sobrou no meu pé, uns 10 metros antes da intermediária, dominei bem, comecei a correr, dei tudo de mim, na minha cabeça eu era Michael Owen, mas na verdade, o volante do outro time, com senso de cobertura, eletricista, calvo, visivelmente acima do peso, começou a me alcançar no pique. Meu primo centro avante, pedia bola, gritava, xingava minha mãe, que também é prima dele, na minha cabeça eu tinha uma visão de jogo de Fernando Redondo, mas eu só estava com medo e queria me livrar da bola. Cruzei a linha do meio-campo, preparei o chute, na minha cabeça o chute foi na vêia, mas na verdade o campo/pasto todo irregular tinha tufo de grama, a bola quicou, no momento decisivo, digno de Cartier-Bresson, meu pé na época 39 se encaixou perfeitamente em baixo da bola topper, com toda minha força (que não era muita) a bola subiu, viajou, cosmonauta, Yuri Gagarin, uma parábola começou a se formar, nos dois sentidos, a bola perdendo força foi caindo, caindo, e de repente caiu, dentro do gol.

O goleiro do time da cidade vizinha, o mais alto do município, confiante, adiantado, subestimou o raquítico e nada promissor ponte esquerda. Gol! Gritei, eu jovem evangélico, queria comemorar como atleta de Cristo numa era pré-Kaka, como é que Baltazar “o artilheiro de Deus” comemoraria? Não lembrei, soltei um palavrão nada evangélico, na arquibancada uma mistura de comemoração e risos, meus amigos de fora, Fernando, com a perna quebrada, incrédulo, Mychael, expulso no começo do segundo tempo, ria de doer a barriga. Foi o primeiro dia de que o futebol de várzea saiu com Monthy Python, desde “a partida de futebol dos filósofos”. Empatei o jogo, Gol que o rei não fez. Se Pelé foi o maior, e eu fiz um gol que Pelé não fez, eu sou maior que Pelé, pelo menos fui naquele dia em Moiporá.

Carlos Henrique de Paula.

--

--